UMA VELHA GUERREIRA
Mini Conto - Uma Velha Guerreira
Carmen Apóstolo
Seu olhar era severo, porém, denotava a firmeza de uma verdadeira guerreira, destemida e confiante na vida, com seus movimentos de volta à calma, tudo dentro de um equilíbrio admirável. Assim era Dona Antônia. Sempre arrastava suas chinelas atrás de um balcão, na pequena cidade de Canoa Grande.
Aquele armazém de secos e molhados, representava a vida para aquela senhora que vivia a contabilizar : somando, dividindo e multiplicando como ninguém, tudo na hora, mesmo sendo analfabeta. A freguesia era grande e nos dias de pagamento havia incumbências para todos. Aquele espaço de vendas ficava repleto de colonos que amarravam seus cavalos nos postes enquanto faziam suas compras. Jamais conheci uma pessoa mais sábia quanto aquela em toda minha vida.Agora eu penso assim, relembrando os fatos e suas conjecturas. As letras pareciam estar latentes em sua mente e, de quando em vez eram manifestadas com propriedade através de atitudes verbais ou soluções práticase acertadas.
Naquela época, tempos idos e saudosos,eu ainda era criança e brincava na praça da matriz com minhas amigas , sempre depois de chegarmos da escola. Brincávamos de roda, passa anel, peteca, pular corda, isto tudo enquanto não chegasse um belo circo que nos arrebatasse arrebatasse a todos , pela preferência. Quando isto acontecia ,muitas crianças eram escolhidas para fazer parte do elenco do circo teatro. Assim, as famílias garantiam a lotação.
Só aquela atenta senhora não arredava os pés dali antes da hora de baixar as portas. Eu bem que gostava de todo esse movimento porque me rendia muito mais caramelos e sorvetes apetitosos na sorveteria do Senhor Emílio Guither. A comemoração das vendas sempre era por la .
Muitas vezes eu ficava a pensar , havia algo que não combinava com o semblante de Dona Antônia, tanto lucro, tanto sucesso e tanta severidade no olhar.Agora entendo . Aquela postura era indispensável para impor o respeito devido. É , eu não sabia analisar bem os fatos, apenas pensava, sem profundidade. Para mim, ela era boazinha e também gostava de caramelos coloridos.
Depois de certo tempo eu descobri que seus filhos todos já tinham se casado e ela se dedicava ao trabalho para matar a saudade. Eu,sem perceber , ajudava distraindo-a com minha conversa infantil e ela também me contava alguns casos quando lhe sobrava tempo.
Numa quinta feira santa, dia da cerimônia do Lava-
pés , eu estava bem em frente ao armazém quando vi muitos balaios na calçada e uma fila de pessoas a esperar . Corri para perto e vi que eram
pães caseiros para distribuir a todos que por ali passassem. Esta era uma velha promessa daquela criatura que todo ano oferecia pães ao povo e aos 12 apóstolos que participavam da cerimônia na igreja.Naquele dia não havia postes suficientes para amarrar tantos cavalos que estavam ali parados.
Dona Antônia não demonstrava muito seus sentimentos, mas ,gostava de crianças, pois era madrinha de todos. Cada criança que nascia era um novo afilhado.
Eu, como afilhada mais chegada ,fui convidada para ir com ela fazer uma visita a sua amiga Rafaela. Eu entendi que iriam cortar uma casaca. Chegando la, conversa vai, conversa vem...nem Dona Antônia, nem sua amiga Rafaela cortaram casaca nenhuma. Na hora da despedida, boa noite, boa noite, eu não consegui me segurar e perguntei:
- E a casaca, não vão cortar?
Foi só rizada. Depois eu soube que cortar casaca era jogar conversa fora ou falar dos outros.
Achei mesmo que era muita conversa para uma casaca só.
Ela me contava , entre outras coisas,que sempre no último sábado
de cada mês os colonos das fazsndas recebiam uma ordem de pagamento para comprarem o que precisassem . Com pouco dinheiro compravam : carne seca, bacalhau, sardinha prensada, linguiça na banha , além de roupas calçados etc.
Assim o tempo passou ...passou e ficou curto para tantos empreendimentos.
O que eu sei é que aquela guerreira enriqueceu, nunca leu, nunca escreveu, mas entendeu tudo que nunca lhe foi ensinado.
Sua força, determinação e severidade, misturadas à doçura ,,sempre ficarão gravadas em mim e fazem parte da tênue lembrança dos dias da minha infância.
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